sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dois Mundos

Antes de começar a escrever este texto fecho os olhos e me deixo ser levada pelos sons que tomam conta deste sábado calmo. Um passarinho em alguma arvora próxima pia, alguns carros passam na rua,uma moto com o motor desregulado faz um barulho insuportável, longe consigo distinguir um ônibus,minha mãe mexe em alguma coisa na cozinha,nos talheres provavelmente por causa do barulho,metálico, meu pai passou no corredor arrastando seus chinelos,som arrastado,como vento baixinho e agora a TV está ligada,parece uma melodia,estaria meu pai vendo um de seus filmes de cowboy?ou seria apenas Tom e Jerry? Você lendo o texto, experimente esta sensação, ouça o que esta ao seu redor,e agora imagine e se todo este barulho desaparecesse? E se só te restasse o silencio?

“Dois Mundos” retrata o universo dos surdos, não é um documentário de imagens,mas de sons,sinestésico. A diretora Thereza Jessouroun explora de maneira inventiva o seu objeto,o ouvir. Já de inicio,nos causa estranheza o som altíssimo da projeção,amplificado ele dói aos ouvidos,atordoa um pouco. Gostaria que fosse um pouco mais baixo,penso eu num primeiro momento,mas quem já teve até uma leve inflamação no ouvido sabe que dentro de locais fechados cria-se como se fosse um vácuo, o som é abafado, e sendo mais baixo,conseguiriam ouvir ao documentário as pessoas com problemas auditivos?Na fila para a sessão noto na minha frente um grupo conversando em libras,um papo animado pelas expressões e pela velocidade de seus gestos,uma conversa silenciosa, fiquei imaginando como seria ir ao cinema e não ouvir nada,qual a percepção de um filme,todo construído para o uso do som sem este ,as imagens por si só e os atores bastam?

Neste documentário não, a presença do som é onipresente, alto, abafado,eco,todas as maneiras de se ouvir e se sentir o barulho, pois quem é surdo pode não ouvir aquilo que está sendo escutado pela maioria,mas ele sente,afinal som não são ondas propagadas no espaço?Ele vibra,eles sentem a vibração,coisa que nós ouvintes perdemos um pouco a sensibilidade de perceber, Thereza coloca a sala de exibição para vibrar com a chegada de um metro na estação,com a musica alta de uma discoteca.

Partindo de vários depoimentos de jovens surdos, a diretora cria um panorama rico de impressões deste mundo,como cada um se relaciona com o silencio e com o barulho quando com o aparelho,como cada um ouve.Eles ouvem diferentemente,os sons não são tão claros,as vezes os menores sons não são captados,mas nós ouvintes captamos, estamos abertos para estas pequenas coisas? Uma das garotas disse que ficou maravilhada em saber que seus passos na areia produziam barulho,podemos ouvir nossas próprias pegadas,quantas vezes você ouviu o barulho de seus pés? A mesma entrevistada relatou que por viver no silencio inventava os sons das coisas. O poeta Manoel de Barros diz que “tudo que não invento não existe”,ela inventou o mundo a sua maneira,preencheu lacunas,o som existe como nós o percebemos,o mundo existe a nossa maneira.

“Dois Mundos” não trata de maneira complacente os surdos, não os transforma em vitimas, eles vêem,ouvem o mundo de outra maneira,nem pior,nem melhor,apenas diferente. E se por algum momento o espectador ficar tentado a se compadecer do grupo,muitos deles nos lembram que ouvir excessivamente,tudo, a todo momento,sem trégua pode ser desgastante, “meditar” um pouquinho,ou seja retirar o aparelho e se apartar do mundo sonoro, pode ser muitas vezes algo revigorante. É verdade,enquanto termino este texto,um carro pára em baixo da minha janela com o som alto, sou obrigada a ouvir funk e sertanejo contra minha vontade,o passarinho em alguma arvore próxima silencia, e sou deixada com este barulho nada agradável.

2 comentários:

  1. oi, malu.
    que legal que eu te achei.

    enfim, queria dizer que a crítica do TANTO que você escreveu é a melhor que eu já li. você me ajudou a pensar o meu trabalho.

    parabéns pela inteligência e sensibilidade.

    um beijo,
    Nataly

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  2. Nataly
    fiquei muito feliz em saber disto!
    me mande noticias sobre os seus trabalhos porque gostaria muito de acompanhar!
    parabéns pelo curta!
    um beijo

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